A embriaguez nos contratos de seguro deve ser analisada com rigor técnico e jurídico, sendo excludente de cobertura apenas se provar dolo ou agravamento intencional.
Por Felipe Gingold, Luis Lucas Nunes de Sá Caldas e Vinicius Barbosa
O contrato de seguro, conforme disposto no art. 757 do CC1, é aquele por meio do qual o segurador se obriga, mediante o recebimento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos previamente estipulados. Trata-se de uma relação contratual de natureza bilateral, aleatória e de execução continuada, que se ancora em dois pilares fundamentais: a boa-fé objetiva e o equilíbrio atuarial.
A boa-fé objetiva impõe a ambas as partes contratantes o dever de lealdade, transparência e cooperação, sendo especialmente relevante na fase pré-contratual, durante a formação do contrato, e ao longo da sua execução. Já o equilíbrio atuarial assegura que o valor do prêmio corresponda, de forma proporcional, à extensão do risco assumido pelo segurador, preservando a viabilidade econômica da mutualidade.
Nesse contexto, a embriaguez do segurado – entendida como estado de alteração das faculdades cognitivas e psicomotoras em razão da ingestão de álcool – reveste-se de especial interesse jurídico, por potencialmente representar agravamento do risco originalmente contratado. Tal agravamento pode repercutir de forma diversa conforme a natureza do seguro, exigindo análise casuística e interdisciplinar.
- Seguro de vida
No seguro de vida, cujo objeto é a proteção da vida humana – bem jurídico de natureza existencial e indisponível – a repercussão da embriaguez apresenta particularidades. A subscrição do risco se baseia em critérios biométricos, como idade, sexo, histórico médico e hábitos declarados pelo proponente. O consumo eventual ou social de bebidas alcoólicas, por não constituir condição estrutural nem comportar caráter contínuo, não costuma, por si só, interferir significativamente na tarifação do prêmio.
A exclusão da cobertura com fundamento na embriaguez só encontra respaldo legal quando configurado o agravamento intencional do risco, nos termos do art. 768 do CC2. Tal agravamento exige a demonstração de uma conduta consciente e voluntária do segurado, com vistas a aumentar a probabilidade de ocorrência do sinistro. Nos casos de embriaguez transitória, sem o dolo específico de provocar o evento morte – como ocorre, por exemplo, em situações de lazer ou consumo moderado – não se caracteriza, via de regra, a intenção de fraudar o contrato.
Importante frisar que apenas a ingestão deliberada de álcool com o intuito de abreviar a própria vida poderia ser juridicamente assimilada ao suicídio premeditado, o qual também possui tratamento legal específico (art. 798 do CC)3. Ademais, a demonstração do nexo causal entre o estado de embriaguez e o evento morte – especialmente em contextos não acidentais – é marcada por elevada complexidade técnica e probatória, o que torna inadequada qualquer exclusão automática de cobertura com base nessa condição.
Nesse viés, destaca-se que o STJ já firmou entendimento nessa matéria por intermédio da súmula 620, ipsis litteris:
“Súmula 620: A embriaguez do segurado não exime a seguradora do pagamento da indenização prevista em contrato de seguro de vida.”
Logo, ressai cristalino que, no caso dos seguros de vida, em geral, a seguradora deve arcar com a indenização, ainda que o segurado esteja embriagado, salvo na hipótese de complexa demonstração do agravamento intencional do risco.
- Seguro de responsabilidade civil
Diferente é o tratamento jurídico da embriaguez no âmbito do seguro de responsabilidade civil, em especial aquele relacionado à condução de veículos automotores. Nessa modalidade, o objeto do seguro é o ressarcimento de danos causados a terceiros, decorrentes de condutas culposas ou, em certos casos, dolosas do segurado. Trata-se de um seguro que, por sua própria natureza, carrega forte função social e atende à teoria da dupla função: garantir proteção patrimonial ao segurado e assegurar a reparação ao terceiro prejudicado.
A embriaguez ao volante constitui, além de infração administrativa e crime previsto no art. 306 do CTB4, um dos principais fatores de risco para a ocorrência de acidentes graves. Nesse sentido, a ingestão de álcool pode configurar agravamento relevante e não comunicado do risco, autorizando a exclusão da cobertura securitária nos termos do art. 768 do CC.
Todavia, essa exclusão encontra limites jurídicos quando confrontada com o direito do terceiro lesado. A jurisprudência dominante – com fundamento nos princípios da função social do contrato e da proteção da vítima – tem reconhecido que a seguradora não pode se eximir do pagamento da indenização ao terceiro prejudicado, ainda que a embriaguez do segurado esteja comprovada. Senão, veja-se o entendimento do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva no REsp 1.684.228/SC:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. SEGURO DE AUTOMÓVEL. GARANTIA DE RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. CONDUTOR DO VEÍCULO. SEGURADO. CAUSA DO SINISTRO. EMBRIAGUEZ. DENUNCIAÇÃO DA LIDE. SEGURADORA. DEVER DE INDENIZAR. CLÁUSULA DE EXCLUSÃO. INEFICÁCIA PARA TERCEIROS. PROTEÇÃO À VÍTIMA. NECESSIDADE. TIPO SECURITÁRIO. FINALIDADE E FUNÇÃO SOCIAL.
[…]- Consiste a controvérsia recursal em definir se é lícita a exclusão da cobertura de responsabilidade civil no seguro de automóvel quando o motorista, causador do dano a terceiro, dirigiu em estado de embriaguez.
- É lícita, no contrato de seguro de automóvel, a cláusula que prevê a exclusão de cobertura securitária para o acidente de trânsito (sinistro) oriundo da embriaguez do segurado ou de preposto que, alcoolizado, assumiu a direção do veículo. Configuração do agravamento essencial do risco contratado, a afastar a indenização securitária. Precedentes.
- Deve ser dotada de ineficácia para terceiros (garantia de responsabilidade civil) a cláusula de exclusão da cobertura securitária na hipótese de o acidente de trânsito advir da embriaguez do segurado ou de a quem este confiou a direção do veículo, visto que solução contrária puniria não quem concorreu para a ocorrência do dano, mas as vítimas do sinistro, as quais não contribuíram para o agravamento do risco.
- A garantia de responsabilidade civil não visa apenas proteger o interesse econômico do segurado relacionado com seu patrimônio, mas, em igual medida, também preservar o interesse dos terceiros prejudicados à indenização.
- O seguro de responsabilidade civil se transmudou após a edição do Código Civil de 2002, de forma que deixou de ostentar apenas uma obrigação de reembolso de indenizações do segurado para também abrigar uma obrigação de garantia da vítima, prestigiando, assim, a sua função social.
- Recurso especial não provido.
(REsp n. 1.684.228/SC, relatora Ministra Nancy Andrighi, relator para acórdão Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 27/8/2019, DJe de 5/9/2019.)
Destarte, as seguradoras podem alegar a exclusão da cobertura de seguro de responsabilidade civil em caso de embriaguez na hipótese de demonstração do agravamento do risco, mantendo-se responsável, todavia, por terceiros envolvidos. Nesses casos, a seguradora preserva o direito de regresso contra o segurado causador do dano, realinhando o desequilíbrio contratual sem comprometer os direitos do terceiro de boa-fé.
- Seguro de danos materiais
No seguro de danos materiais, especialmente aquele que protege o patrimônio do próprio segurado, como o seguro de casco de automóveis, a análise da embriaguez se dá sob a ótica da culpa grave e da violação do dever de conservação do bem. A condução de veículo sob influência de álcool, principalmente quando associada a outros fatores de risco – como excesso de velocidade, transposição indevida de sinal vermelho ou condução em via incompatível com o tráfego – pode ser interpretada como descumprimento do dever contratual de diligência.
Nessas hipóteses, demonstrado o nexo de causalidade entre o estado de embriaguez e a ocorrência do sinistro, a negativa de cobertura encontra respaldo técnico e jurídico, e a cláusula de exclusão se torna plenamente aplicável. Por se tratar de relação contratual estrita, sem reflexo direto sobre terceiros, a exclusão de cobertura restringe-se ao próprio segurado, sendo válida desde que redigida de forma clara, expressa e inteligível, conforme exigência do art. 760 do CC5.
Nesse âmbito, tem-se entendimento firmado pelo egrégio TJ/MG acerca da possibilidade de recusa da seguradora de indenizar o segurado por danos materiais em caso de embriaguez, in verbis:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE COBRANÇA DE INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA. CONTRATO DE SEGURO DE DANO A VEÍCULO. EXPRESSA EXCLUDENTE DE COBERTURA PARA ACIDENTE ENVOLVENDO CONDUTOR EMBRIAGADO. LEGALIDADE. SINISTRO. BOLETIM DE OCORRÊNCIA INFORMATIVO DA CONDIÇÃO DE EMBRIAGUEZ DO CONDUTOR. PRESUNÇÃO IURIS TANTUM DE VERACIDADE. DOCUMENTO NÃO DESCONSTITUÍDO PELO AUTOR. ÔNUS DA PROVA. AGRAVAMENTO DO RISCO. RECONHECIMENTO. NEGATIVA DE COBERTURA. EXERCÍCIO REGULAR DE DIREITO. RESPONSABILIDADE CIVIL DE INDENIZAR. INOCORRÊNCIA. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO INICIAL. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. I- O contrato de seguro deve ser interpretado restritivamente, conforme as cláusulas nele previstas, pactuadas livremente pelas partes, sendo válidas aquelas restritivas, desde que bem informadas. II- Estipulado no contrato de seguro de dano a cobertura para casco, com exceção dos sinistros envolvendo condutor embriagado, diante do agravamento do risco, caso verificada a situação excludente no caso concreto, deve ser reconhecido que a seguradora agiu no exercício regular de direito ao negar o pagamento da indenização. III- Recurso conhecido e não provido. (TJMG – Apelação Cível 1.0000.21.148160-1/001, Relator(a): Des.(a) Vicente de Oliveira Silva , 20ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 26/01/2022, publicação da súmula em 27/01/2022)
Assim, a cobertura securitária referente aos danos materiais pode ser excluída em caso de embriaguez do segurado, desde que devidamente estipulada e demonstrado o nexo causal com o sinistro objeto da indenização.
- Critérios técnicos e probatórios
A avaliação da embriaguez no contrato de seguro deve se pautar por critérios técnicos objetivos, sob pena de decisões arbitrárias e insegurança jurídica. Os parâmetros legais previstos na legislação de trânsito – como o limite de 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou 0,3 mg por litro de ar alveolar expirado – constituem balizas técnicas para aferição do estado de embriaguez.
A validade dos meios de prova utilizados, tais como etilômetro (bafômetro), exames laboratoriais ou perícias toxicológicas, deve observar critérios rigorosos de cadeia de custódia, calibração dos equipamentos e margem de erro admissível. Tais provas devem ser acompanhadas de outros elementos que corroborem o vínculo causal entre o estado etílico e o evento danoso, afastando conclusões baseadas exclusivamente em presunções genéricas ou estigmatizações do comportamento do segurado.
- Elemento volitivo e dolo eventual
Outro aspecto jurídico relevante diz respeito à análise do elemento volitivo da conduta do segurado. A embriaguez voluntária, ainda que reprovável, não se equipara automaticamente ao dolo. Apenas quando houver evidência de que o segurado assumiu conscientemente o risco de produzir o sinistro – hipótese de dolo eventual – poderá ser aplicada com legitimidade a cláusula de exclusão de cobertura.
A distinção entre dolo eventual e culpa consciente, embora tênue, possui implicações jurídicas profundas. Enquanto na culpa consciente o agente acredita sinceramente que o resultado danoso não ocorrerá, no dolo eventual há aceitação do risco, o que aproxima a conduta da fraude contra o contrato. Essa análise exige abordagem fática minuciosa, respeitando os princípios do contraditório e da ampla defesa.
Considerações finais
Conclui-se que a repercussão jurídica da embriaguez nos contratos de seguro é tema complexo e multifacetado, que exige tratamento técnico, ponderado e compatível com os princípios estruturantes do direito securitário. A aplicação de cláusulas excludentes deve obedecer ao princípio da boa-fé objetiva, à função social do contrato e à proteção do legítimo interesse do segurado e de terceiros.
A exclusão da cobertura com fundamento na embriaguez deve ser exceção, jamais regra, e somente se legitima quando baseada em prova robusta, tecnicamente embasada e juridicamente válida. Assim, decisões automáticas, arbitrárias ou ancoradas em estereótipos comprometem a estabilidade da relação securitária e desestimulam a confiança no instituto do seguro, essencial para a gestão de riscos em sociedade.
1 Art. 757. Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados.
Parágrafo único. Somente pode ser parte, no contrato de seguro, como segurador, entidade para tal fim legalmente autorizada.
2 Art. 768. O segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato.
3 Art. 798. O beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o segurado se suicida nos primeiros dois anos de vigência inicial do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o disposto no parágrafo único do artigo antecedente.
4 Art. 306. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:
Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
§ 1o As condutas previstas no caput serão constatadas por
I – concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou
II – sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora.
§ 2o A verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia ou toxicológico, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.
§ 3o O Contran disporá sobre a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia ou toxicológicos para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo.
§ 4º Poderá ser empregado qualquer aparelho homologado pelo Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia – INMETRO – para se determinar o previsto no caput.
5 Art. 760. A apólice ou o bilhete de seguro serão nominativos, à ordem ou ao portador, e mencionarão os riscos assumidos, o início e o fim de sua validade, o limite da garantia e o prêmio devido, e, quando for o caso, o nome do segurado e o do beneficiário.
Fonte: Migalhas