Crédito: Arquivo Senado Federal
Referência da história política contemporânea do país, a promulgação da Constituição Cidadã em 5 de outubro de 1988 foi marcada por discursos e emoção. O principal símbolo do processo de redemocratização nacional completa 30 anos nesta sexta-feira (5). Emendado 99 vezes, o texto exige aperfeiçoamentos constantes, segundo especialistas. Mas a essência de preservação da cidadania, das instituições e da unidade do Estado são mantidos.
Após 21 anos de regime militar, passou a vigorar a Constituição como instrumento que proporcionou a criação de mecanismos para evitar abusos de poder do Estado.
O presidente da Assembleia Nacional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães (então PMDB-SP), ao promulgar o texto, ressaltou que a nova Constituição não era perfeita, mas seria pioneira no país.
“Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora. Será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados. É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e abri-los”, disse o “doutor Ulysses”, como era chamado por todos.
Mudanças
“A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo. A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca”, afirmou Ulysses Guimarães.
Durante a Assembleia Constituinte, foi cogitada a possibilidade de revisão do texto constitucional a cada cinco anos. No entanto, os parlamentares consideraram que esse dispositivo poderia abrir margem para que, ao passar dos anos, a Constituição fosse desfigurada. Dessa forma, prevaleceu a tese de uma única revisão e nela foram feitas apenas modificações de redação.
Autor do livro A Constituinte de 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem econômica e regras do jogo, o professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Adriano Pilatti, afirmou que, mesmo contemporânea, a Constituição exige aperfeiçoamentos.
“Assim como outras constituições modernas e contemporâneas, ela prevê a necessidade de aperfeiçoamento ao estabelecer o rito das reformas constitucionais. Isso é necessário para que justamente se possa tentar atualizar permanentemente o ordenamento fundamental com relação às mudanças sociais, econômicas, culturais, que naturalmente acontecem em toda a sociedade ” pelo menos nas sociedades que não estão sujeitas ao regime de força que coagula tudo, calcifica tudo”.
Emendas
Desde que foi promulgada, a Constituição Federal recebeu 99 emendas até dezembro de 2017. Outras seis emendas foram resultado da Revisão Constitucional em 1993.
A primeira alteração ocorreu em 1992, definindo a remuneração de deputados estaduais e dos vereadores. Pela regra, ficou estabelecido que o salário de um vereador depende do salário de um deputado estadual e do tamanho do município. Assim, dependendo do tamanho do município, o salário de um vereador pode variar entre 20% e 75% do salário de um deputado estadual.
“Apesar do número que impressiona, uma centena em 30 anos, elas tocaram toda uma série de conteúdos detalhistas e, de certo modo, periféricos em relação ao núcleo duro do texto Constitucional, que é justamente a organização democrática do poder o reconhecimento e a garantia desses direitos”, avaliou Pilatti.
“Jabuticaba”
O professor emérito de Ciência Política da Universidade de Brasília, David Fleischer, disse que, apesar de passados 30 anos desde sua promulgação, a Constituição é considerada “inacabada”, porque cerca de 200 itens ainda precisam ser regulamentados.
“Com muitos itens difíceis, o constituinte aprovou apenas o conceito e disse que precisa ser regulamentado. São temas tributários, municipalistas e outros. Isso deixa muitas dúvidas e incertezas. Há um conceito na Constituição que não se pode valer dele porque não foi regulamentado e isso é uma coisa muito desagradável. Em constituições de outros países não existe isso, tudo é regulamentado. Isso é uma construção “jabuticaba brasileira””.
Segundo Fleischer, o impacto da falta de regulamentação é o aumento da participação do Judiciário em um processo que leva a interpretação além do texto constitucional, na avaliação de Fleischer. “O Congresso deparou com algumas mudanças importantes que não quis ou não conseguiu fazer e o Judiciário achou que para o Brasil era importante essa mudança e fez via judicialização. É um papel que cabe ao Supremo Tribunal Federal”, avaliou.
Vácuo
Para o consultor legislativo do Senado, Gilberto Guerzoni, o vácuo de decisões do legislativo contribui para o cenário de protagonismo do Poder Judiciário. “Quando o Congresso não decide uma matéria, alguns dizem que (os congressistas) estão sendo relapsos. Mas não decidir é uma decisão também. Isso provoca o aumento da judicialização e até o ativismo judicial”.
Guerzoni acrescenta que “hoje há uma ampliação muito grande do papel do Poder Judiciário, mas o responsável por isso é o próprio Poder Legislativo, que muitas vezes deixa essa brecha para o Judiciário atuar”.
Desconstitucionalização
A possibilidade de retirar trechos da Constituição e permitir que sejam regulados por lei, a chamada desconstitucionalização, divide a opinião de especialistas no assunto.
“A tendência que a gente tem hoje é de aumentar as matérias constitucionais e se olharmos de uma forma geral as PECs que tramitam, quase todas buscam acrescentar itens na Constituição. às vezes, matéria que não tem nenhuma índole constitucional, que deveriam ser tratadas em lei”, observou Guerzoni.
Para o professor Adriano Pillati, a possibilidade de retirar trechos da Constituição tem sido tratada no país de forma “preconceituosa” ao privilegiar a retirada de direitos coletivos em detrimento dos individuais, como patrimônio.
“Há muitas normas que poderiam estar nos respectivos códigos e leis complementares, mas quando essa discussão se coloca, não é em relação a isso que os defensores da Constituição “anoréxica” se referem. Então, em geral, essa discussão é enviesada, contaminada por preconceitos, interesses ideológicos”, afirmou.
Mais polêmicas
Outra polêmica relacionada à Carta Magna é sua extensão. Com 114 artigos e em vigor há 30 anos, a Carta Magna brasileira se contrapõe em extensão com a Constituição norte-americana, que tem sete artigos e foi emendada 27 vezes desde sua promulgação em 1787.
“Nossa Constituição é muito detalhada, fruto do momento em que ela foi feita. As pessoas queriam colocar coisas na Constituição e ela acabou tratando de uma série de temas que tradicionalmente não são matéria constitucional. Capítulos como tributários e previdenciários têm detalhamento muito grande, como a lista de impostos, as condições para aposentadoria. A lei acaba ficando limitada e o que a gente vê nesse período todo, em 30 anos, é que existe uma tendência de aumentar ainda mais o número de matérias na Constituição”, afirmou Guerzoni.
Apesar das críticas, Fleischer descarta a possibilidade da convocação de outra Assembleia Constituinte. O professor, no entanto, avalia que revisões constitucionais podem ser aplicadas para aparar “arestas” na Carta Magna.
“O Congresso já fez essa revisão, e nessa ocasião, por exemplo, ele reduziu o mandato presidencial de cinco para quatro anos. Então, isso foi um pacote de mudanças que se executou em 1994. Eleger uma nova Constituinte acho muito difícil de ocorrer”. Com informações da Agência Brasil.